Um rebanho sem pastor. A cada dia, cresce o número de cristãos que optam por servir a Deus longe dos templos.
Boa parte dos sem-igreja já teve experiência comunitária, mas, desiludidos com lideranças e rituais eclesiásticos ou feridos em relacionamentos fraternais, deixaram o aprisco. Muitos chamariam esses irmãos de rebeldes, desviados, desobedientes à exortação contida no Livro de Hebreus para congregar. Mas o rótulo não impede que sigam sua caminhada solitária ou em pequenos grupos. Longe de se sentirem afastados de Deus, eles leem a Bíblia, oram, louvam, professam a fé cristã e muitos se orgulham em declarar "Jesus, sim; Igreja, não”. Mas há também aqueles que, decepcionados com suas denominações, desistiram da caminhada cristã e torcem o nariz quando ouvem falar em igreja. Às vésperas do aniversário de
quinhentos anos da reforma protestante empreendida por Martinho Lutero, estará a igreja evangélica diante de uma crise? Outra reforma se avizinha? As ovelhas sem pastor enumeram várias razões para justificar o pé fora da organização eclesiástica. No Brasil, o fenômeno – que não é novo – foi constatado em números. Segundo dados do IBGE, de 2003 a 2009, o número de evangélicos que disseram não ter vínculo institucional saltou de 4% para 14%, cerca de 4 milhões de pessoas. E a cada dia, os desigrejados se multiplicam por todo o país. Boa parte desses fiéis se declara desiludida com as instituições religiosas, enquanto outros defendem uma vida cristã vivenciada na intimidade, ou desinstitucionalizada.
O motivo para deixar a comunhão com os irmãos está numa frase: decepção com lideranças e com os relacionamentos dentro da igreja. "Desilusão com os homens, não com Deus".
Autor do livro "Os Sem-Igreja – Buscando o caminho de esperança na experiência comunitária", Bomilcar lançou um novo olhar para o protestantismo contemporâneo. Aos fiéis solitários, alertou que a convivência entre pessoas sempre envolve riscos e decepções, mas vale a pena. Aos “igrejados”, ele propõe uma autocrítica para que a experiência comunitária não seja refém de líderes personalistas que cultivam projetos pessoais e de uma estrutura engessada, muitas vezes conduzida de forma arrogante e que não encara os desafios modernos sob a luz do Evangelho. "Não trato os sem-igreja de maneira pejorativa, pois há pessoas com perguntas muito sérias que as denominações históricas, pentecostais e neo-pentecostais precisam responder. Há muita gente que não quer mais seguir essa cartilha imposta por líderes que perseguem os que são capazes de pensar de modo diferente e questionar aqueles que envergonham o evangelho com seus maus testemunhos e cobranças descabidas”, ressalta. Apesar da exortação à igreja atual, Nelson Bomilcar – convertido há 38 anos, não encoraja o fiel a abrir mão da experiência comunitária. "Não devemos deixar de congregar. A pergunta é onde e com quem. Muitos se reúnem em escolas, casas e outros locais e vivem o verdadeiro cristianismo. Outros, em templos. Essa nova geração de cristãos deve buscar e insistir em um caminho de esperança para que as pessoas não abram mão dessa experiência maravilhosa comunitária, orgânica, que é ser igreja e levar o Evangelho a sério, em sua integralidade”, aconselha. O pastor da Igreja de Cristo em Brasília, Edson Gouveia, vê com preocupação a opção de crentes pela vida fora da comunidade cristã. Para ele, a igreja é instituição divino-humana, retratada como o Corpo de Cristo e formada por pessoas chamadas para viver uma vida em santificação. "Para funcionar bem, o corpo precisa estar inteiro", afirma.
"Uma vida cristã isolada não permitirá que cumpramos as ordens de amar, levar as cargas, acolher, suportar e orar uns pelos outros, por exemplo. A obediência a esses princípios, fundamentais para a vida cristã, trará crescimento e maturidade espiritual no relacionamento do Corpo de Cristo", observa. Já o pastor da Assembleia de Deus de Águas Claras, Edvaldo Alves, é enfático: "Deixar de congregar é ato de rebeldia. Aqueles que não se submetem a autoridades e preferem um caminho individual, fechando os olhos à exortação para que os cristãos 'não abandonem a congregação, como é costume de alguns', influenciam outros a cometerem o mesmo erro", assevera. Segundo o pastor assembleiano, a vida cristã fora da comunidade é resultado do individualismo, uma prática que vai na contramão dos ensinamentos bíblicos.
A OVELHA PERDIDA O abandono definitivo do evangelho é uma decisão tomada por um número incalculável de pessoas, o que preocupa os líderes das igrejas. Basta perguntar a qualquer crente se conhece alguém “desviado”, que a resposta vem rápida como um relâmpago. E vem, inclusive, com alta dose de autocrítica ao afirmar que a igreja é o único exército do mundo cujos soldados não voltam para buscar seus feridos, caídos no campo de batalha. Mas o trabalho de muitas igrejas tem mostrado que é possível resgatar a ovelha perdida. Para o pastor Sinfronio Jardim Neto, presidente do Ministério Jesus Não Desistiu de Você, da Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte, ainda existe uma equivocada percepção dos crentes, principalmente dos líderes, de que “saiu um, Deus manda dez para o seu lugar”. Segundo o pastor, que há catorze anos atua na recuperação de afastados, 90% das igrejas não estão preocupadas em recuperar a ovelha perdida, como ensinou Jesus. “As denominações estão míopes e não têm a mesma visão e o coração cheio de compaixão pelos desgarrados. A maioria delas não tem projeto que vise a alcançar os desviados. Não é uma missão fácil, pois muitos estão feridos e doentes espiritualmente, mas querem voltar à casa de Deus. O mais difícil mesmo é convencer as igrejas de que precisam buscar esses irmãos”, lamenta. Com livros publicados, como “Onde Está o Seu Irmão?”, e seminários e palestras ministrados no Brasil e no exterior, Jardim Neto é convidado para implantar, em igrejas de várias denominações espalhadas pelo país, o ministério A Centésima Ovelha. “Não é uma campanha que acaba em poucos dias, mas um ministério que desperta na igreja a visão que está no coração de Deus, que é a de buscar o filho perdido”, explica animado. Ele lembra que em Belo Horizonte, em doze anos de ministério, a Igreja Batista da Lagoinha conseguiu trazer de volta ao convívio da comunidade da fé cerca de quinze mil desviados. Os pastores e líderes admitem o problema, principalmente porque muitas ovelhas deixam o aprisco por falta de atenção. “O cuidado pastoral é indispensável para que as pessoas se sintam amadas. Às vezes as igrejas são legalistas e exigentes, e é preciso reconhecer as falhas e buscar a ovelha desgarrada”, afirma o pastor da Igreja de Cristo, Edson Gouveia. O pastor assembleiano Edva
ldo Alves critica os líderes que não querem envolvimento com seu rebanho além do horário do “expediente” da igreja e pouco se importam com suas necessidades espirituais e mesmo materiais. “Fomos chamados para servir e cuidar do rebanho. Essa é uma responsabilidade que não pode ser negligenciada, uma vez que as necessidades das ovelhas devem ser supridas. Não desligo meu celular. Sou pastor por 24 horas, para exercer um chamado de Deus”, enfatiza.
A IGREJA DE DUAS ASAS Os pequenos grupos têm sido fortes aliados na luta pela permanência dos fiéis. O escritor cristão norte-americano Carl Hurton ouviu líderes evangélicos para seu doutorado em crescimento de igrejas, nos Estados Unidos. A pesquisa, retratada em uma de suas obras, demonstrou que os grupos eclesiásticos que ainda utilizam o sistema "tradicional" têm crescimento tímido em relação àqueles que se utilizam de células ou grupos nos lares. O pesquisador fundamenta suas conclusões nos livros de Atos e Romanos, que narram a experiência dos cristãos primitivos de congregarem em grandes reuniões e também nos lares (At 2.46 e Rm 16.5). Segundo Carl Hurton, por quase toda a existência do cristianismo, a igreja caseira foi sufocada, mas, desde a década de 1980, vem ganhando vida. A parábola da “igreja de duas asas” reforça a importância da reunião em pequenos grupos, em casa, dentro da estrutura da igreja convencional: era uma vez uma igreja de duas asas – uma, para a celebração em grupos grandes; outra, voltada à comunidade dos pequenos grupos, das asas comunitárias. Com as duas, a igreja voava alto, aproximava-se da presença de Deus e ainda sobrevoava por toda a terra, em harmonia. Certo dia, com ciúmes por não ter asas, a serpente desafiou a igreja de duas asas a voar apenas com uma. Enganada e capenga, a igreja conseguiu levantar voo, mas enfraqueceu-se e apenas plainava, sem alcançar as alturas. O criador da Igreja se entristeceu, pois seu projeto das duas asas era perfeito. Segundo Edson Gouveia, nenhuma asa é mais importante do que a outra. Com as duas, a igreja alcança grandes voos, com amadurecimento, comunhão e com- partilhamento. Sem elas, a igreja
“O cuidado pastoral é indispensável para que as pessoas se sintam amadas. Às vezes as igrejas são legalistas e exigentes, e é preciso reconhecer as falhas e buscar a ovelha esgarrada”. "Esse era o modelo da igreja primitiva, que se reunia de casa em casa e em grandes concentrações. Com o passar do tempo, a igreja perdeu essa visão. Tivemos alguns momentos radicais, mas estamos resgatando a igreja do ‘atacado’, que são as reuniões nos templos, e a do ‘varejo’, dos pequenos grupos”, conclui animado. A Igreja Batista Nova Canaã, no Gama, adota o modelo de duas asas. Suas atividades não se restringem aos horários dos cultos dominicais, mas os fiéis se reúnem em grupos, chamados de “células”, onde compartilham, oram, estudam a Bíblia e discipulam os novos convertidos. Atualmente, a comunidade conta com setecentas células, que se encontram semanalmente nos lares, escolas, faculdades, estacionamentos, nos horários os mais diversos. Segundo o apóstolo Paulo César, a visão dos pequenos grupos não suprimiu as grandes celebrações no templo e são eficientes aliados no desafio diário de crescer espiritualmente e de fazer discípulos. “Hoje, os meios de comunicação mostram uma igreja doente e difamada. Assim, quando você convida um amigo, um vizinho, eles não querem ir ao templo, mas aceitam ir a uma reunião em casa ou em outro lugar. Lá, ouvem a Palavra e, quando chegam à igreja, já estão convertidos”, comemora. "A igreja de Jesus Cristo é como a arca de Noé: o mau cheiro de dentro seria insuportável se não houvesse uma tempestade do lado de fora" (Charles Colson). A frase do escritor norte-americano, que ficou conhecido mundialmente como o ex-assessor especial do presidente Richard Nixon, envolvido no escândalo Watergate, e que o levou a cumprir sete meses de prisão, onde se converteu, é lembrada por aqueles que defendem a reunião nos templos. Para o pastor Edvaldo Alves, a equivocada ideia de que igreja é lugar de santos e imaculados ajuda a afastar os fiéis dos templos. "A igreja não é uma reunião de pessoas que não erram, mas de pecadores que buscam a santidade. Ela é imperfeita e continuará sendo até a volta de Cristo. Mas ainda é o melhor lugar para se permanecer", defende. Ainda no seu entendimento, quem busca a igreja perfeita é movido pela ingenuidade do idealista ou pela conveniência de quem não quer envolvimento com o Corpo de Cristo. "A igreja é lugar de compromisso com Deus e seus eleitos, o que faz dela uma estrutura imprescindível para o crescimento cristão", observa. A mesma percepção tem o pastor Nelson Bomilcar. Em sua obra, no capítulo "Conflitos podem ser sinal de sanidade", ele argumenta que mesmo nas reuniões nas casas, em pequenos grupos, haverá desentendimentos, uma vez que elas são ajuntamento de seres humanos. "A igreja é uma comunidade de doentes, infiéis, espelha o que somos – uma sociedade de pecadores. Na igreja primitiva também havia conflitos. A grande diferença é que a graça superabundava no meio do povo, onde as pessoas se quebrantavam, confessavam seus pecados. Hoje, tenho uma esperança moderada de que é possível viver esses valores, pois o amor de muitos vai se esfriar e a fé quase desaparecer, como dizem as Escrituras, mas precisamos perseguir esse ideal".
Fonte:Revista +Cristão