Nos propomos a apresentar uma
explicação para a presente passagem das Escrituras, após uma indagação de uma
aluna, na aula de ensino religioso do nono ano do Colégio Adventista. E o faremos
em duas etapas: 1) Explicando o que entender por cada passagem; 2) Expor a
proposta conciliadora do Dr. Champlim.
I Sm 31.4 Arranca a tua espada, e atravessa-me com ela. Foi pedido um golpe de misericórdia.
Sangrando quase até morrer, Saul pediu que seu escudeiro pusesse fim à sua
história. Ele temia as torturas e as desgraças às quais os filisteus o
submeteriam se o apanhassem vivo. Aqueles pagãos incircuncisos, que não temiam Deus nem os homens,
teriam certeza de que ele morreria com tanta miséria quanta fosse possível.
Mas o escudeiro de Saul rejeitou realizar o serviço
solicitado. Ele temeu tirar a vida ao rei de Israel, mesmo que isso fosse
considerado um ato de misericórdia. Portanto, Saul cometeu suicídio, o que, naturalmente, não concorda com as
histórias relatadas em II Sam. 1 e 4.9,10. O suicídio de Saul era mais uma matança de
misericórdia auto-infligida.
Saul teria morrido lentamente, por causa do ferimento com a flecha, mas talvez
não a tempo de evitar cair nas mãos dos assassinos filisteus. Portanto, ele
teve pressa em acabar com a própria vida. Assim sendo, a mesma espada que havia
matado tantas pessoas tornou-se o instrumento do golpe de misericórdia que pôs
fim à vida do primeiro rei de Israel.
II Sm 1.6 Cheguei por acaso à montanha. Sucedeu que o homem passou pelo monte
Gilboa quando Saul agonizava. O amalequita podia ou não fazer parte do exército
de Saul. Ver a discussão no vs. 3. A expressão “Saul estava apoiado sobre a sua
lança” provavelmente significa apenas que Saul, cansado de fugir, tinha-se
apoiado em sua lança para descansar. Alguns estudiosos sugerem que esse apoio
significava uma tentativa de suicídio, mas I Sam. 31.4 diz-nos que Saul se
suicidou com sua espada.
II Sm 1.7 Viu-me e chamou-me. Em sua agonia, Saul viu o amalequita nas proximidades e
chamou-o implorando que o matasse. II Samuel nada nos diz sobre a flecha do
arqueiro que feriu a Saul, nem sobre a tentativa de suicídio; mas este versículo
apresenta indícios que ele havia sido gravemente ferido, embora não corresse
perigo de morte iminente (vs. 9). O relato de II Samuel também nada diz sobre o
temor de Saul de que os filisteus o encontrassem vivo e o sujeitassem a
torturas (ver 31.4), o que representava a exata razão pela qual ele desejava
morrer imediatamente.
II Sm 1.8 Saul queria saber quem era aquele
homem desconhecido que estava nas proximidades, se era um amigo ou um inimigo.
Talvez o amalequita fosse membro do exército de Saul, alguém que poderia dar o
golpe de misericórdia. Se fosse um filisteu, Saul não lhe teria feito tal
pedido. Se fosse um israelita, sem dúvida poderia tê-lo feito. Ele havia
implorado ao escudeiro que poderia ter executado o trabalho, mas este havia
recusado (ver I Sam. 31.4). O amalequita era uma espécie de figura neutra,
capaz de terminar com a agonia de Saul. Os amalequitas, antigos inimigos de
Israel, haviam atacado os israelitas quando estes tinham acabado de deixar o
Egito (ver Êxo. 17.8-13), e assim carregavam sobre si a maldição de Yahweh, o
que significava que seriam aniquilados de forma absoluta. Ademais, eles
abusaram dos filhos de Israel em várias ocasiões. Ver Deu. 25.18; Juí. 3.13;
6.3. Saul havia administrado uma contundente derrota sobre os amalequitas, não
fazia muito tempo (ver I Sam. 15.4-9). Essa louca história, que sempre mantivera
Israel e os amalequitas em conflito, não importava a Saul naquele momento. Saul
queria apenas morrer, e qualquer um serviria como matador, exceto um filisteu.
II Sm 1.9 Os v. 9 e 10 dizem-nos definitivamente
que Saul estava ferido, mas não corria o perigo de morrer imediatamente. Mais
provavelmente ficaria sangrando até morrer. A história aqui não fala sobre a
flecha do arqueiro nem sobre o suicídio de Saul, detalhes que figuram na
história de I Sam. 31. Saul estava em angústia, agonizante, mas a história de II
Samuel, em seu primeiro capítulo, não nos explica por quê. Talvez o autor
espere que nos lembremos da primeira narrativa, pelo que não seria necessário
repetir os detalhes. Alguns intérpretes, entretanto, salientam que a palavra
“me sinto vencido de cãibra” (ou alguma outra tradução) é uma tentativa de
traduzir um termo hebraico desconhecido, o qual implicaria que Saul estava
mortalmente ferido. Talvez ele apenas estivesse “estonteado” (conforme certa
versão portuguesa diz, “uma vertigem se apoderou de mim”). Mas o vs. 10 é
contrário a isso. O amalequita estava certo de que Saul não sobreviveria por
muito tempo, e isso só pode ser explicado pela suposição de que ele havia sido
ferido de morte.
II Sm 1.10 Com uma espada ou lança, o amalequita
atendeu à solicitação de Saul e tirou-lhe a vida. Dessa forma Saul escapou do
alcance dos temidos filisteus. Ainda assim mutilaram-lhe o corpo, deceparam-lhe
a cabeça e penduraram o seu tronco em uma parede, em Bete-Seã. Ver I Sam.
31.9,10.
“Saul morrera pela mão de um membro da tribo contra quem (no
começo de seu reinado) ele falhara em executar o juízo divino (ver I Sam. 15).
Ele foi rejeitado por sua desobediência, e por causa disso Davi foi
secretamente ungido rei. Agora o julgamento completara o círculo, e um membro
do povo de Agague foi o homem que matou a Saul”.
Tomei-lhe a coroa... e o bracelete. Essas eram insígnias da realeza,
conforme dito em II Reis 11.12. Isso implica pelo menos três coisas: 1. O
amalequita queria prova de que havia matado o rei de Israel; 2. provavelmente
ele queria obter o favor de Davi, recebendo uma recompensa por aquele ato,
visto que Saul, por tanto tempo, havia perseguido Davi como se este fosse um
animal, com intuitos assassinos, e era conhecido como o arquirrival que não lhe
dava um momento de sossego; 3. e, finalmente, é possível que ao trazer as
insígnias reais ele estava reconhecendo Davi como o novo rei de Israel.
Poderíamos esperar que um filho de Saul herdasse o trono, mas Samuel já havia
anulado essa possibilidade (ver I Sam. 13.13,14). De fato, Samuel já havia
ungido a Davi como rei quando Saul estava no auge do poder (ver I Sam. 16).
Talvez todos esses fatos fossem largamente conhecidos.
Tentativas de Reconciliação:
1. Muitos críticos supõem
que é impossível e desnecessário reconciliar os dois relatos. Eles acreditam
que essas narrativas baseiam-se em fontes informativas diferentes,
que eram simplesmente contraditórias. A maioria dos críticos considera a narrativa
de I Samuel mais exatamente histórica.
2. Muitos estudiosos conservadores “reconciliam” os dois relatos supondo
que a história contada pelo amalequita tenha sido uma fabricação, e não reflita o que realmente
aconteceu. O homem teria inventado a história para agradar Davi, que se tornara
conhecido inimigo de Saul. A dificuldade dessa “reconciliação” é que o
compilador de I e II Samuel não afirma tal coisa. Ele não dá nenhuma indicação
de que o amalequita estivesse mentindo, e, por isso mesmo, relatando uma história
contraditória.
3. Podemos tentar uma
reconciliação entre os dois relatos supondo que eles sejam suplementares,
e não contraditórios. Talvez a questão
toda tenha acontecido como se segue:
a. Saul foi ferido por uma flecha e,
potencialmente, ferido de morte. Ele sangraria até morrer.
b. Temendo a tortura às mãos dos
filisteus, caso o encontrassem ferido (embora ainda não morto), Saul pediu que
o escudeiro terminasse com sua vida. Mas o escudeiro, temeroso de tratar dessa
maneira o ungido de Yahweh, recusou-se a atender ao pedido.
c. Diante disso, Saul tentou
suicidar-se, mas realizou um trabalho
inepto. Tudo quanto conseguiu foi outro, ferimento horrível, dessa vez por melo
de sua própria espada.
d. A essa altura do drama, chegou o
amalequita e encontrou Saul agonizante (ver II Sam. 1.9). Saul pediu que o
homem pusesse fim à sua vida, ao que o amalequita atendeu, presumivelmente
usando sua espada ou lança (ver II Sam. 1.10).
Isso nos fornece alguma reconciliação,
mas de nossa própria invenção, e não uma
reconciliação provida pelo autor (ou pelos autores) de I e II Samuel.
Naturalmente, não há razão alguma para nos preocuparmos em reconciliar os
relatos. A fé religiosa não depende desses detalhes, nem de uma harmonia
absoluta, que geralmente é obtida através de alguma manipulação
desonesta. Somente conservadores fanáticos
e os céticos crêem que tal atividade é importante, os primeiros na tentativa de
provar que as Escrituras não contêm erro, e os outros para mostrar todos os
erros das Escrituras. Ambos acabam recorrendo à categoria das manipulações
desonestas.
Uma coisa é certa, Saul terminou sua
vida da maneira mais trágica que alguém pode terminar. Afastado de Deus, que
leva inevitavelmente a morte, quer seja por assassinato, suicídio ou
naturalmente.
Esperamos poder ter lhe ajudado de alguma
maneira.
Reynan Matos
Teólogo
Fonte:
CHAMPLIN, Russell Norman. O Antigo Testamento interpretado: versículo por
versículo. São Paulo: Candeia, 2000. v. 2 p. 1237