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quinta-feira, 5 de julho de 2018

Explicação sobre a aparente contradição entre I Sm 31.4 e II Sm 1.6-10


Nos propomos a apresentar uma explicação para a presente passagem das Escrituras, após uma indagação de uma aluna, na aula de ensino religioso do nono ano do Colégio Adventista. E o faremos em duas etapas: 1) Explicando o que entender por cada passagem; 2) Expor a proposta conciliadora do Dr. Champlim.

I Sm 31.4 Arranca a tua espada, e atravessa-me com ela. Foi pedido um golpe de misericórdia. Sangrando quase até morrer, Saul pediu que seu escudeiro pusesse fim à sua história. Ele temia as torturas e as desgraças às quais os filisteus o submeteriam se o apanhassem vivo. Aqueles pagãos incircuncisos, que não temiam Deus nem os homens, teriam certeza de que ele morreria com tanta miséria quanta fosse possível.
Mas o escudeiro de Saul rejeitou realizar o serviço solicitado. Ele temeu tirar a vida ao rei de Israel, mesmo que isso fosse considerado um ato de misericórdia. Portanto, Saul cometeu suicídio, o que, naturalmente, não concorda com as histórias relatadas em II Sam. 1 e 4.9,10. O suicídio de Saul era mais uma matança de misericórdia auto-infligida. Saul teria morrido lentamente, por causa do ferimento com a flecha, mas talvez não a tempo de evitar cair nas mãos dos assassinos filisteus. Portanto, ele teve pressa em acabar com a própria vida. Assim sendo, a mesma espada que havia matado tantas pessoas tornou-se o instrumento do golpe de misericórdia que pôs fim à vida do primeiro rei de Israel.

II Sm 1.6 Cheguei por acaso à montanha. Sucedeu que o homem passou pelo monte Gilboa quando Saul agonizava. O amalequita podia ou não fazer parte do exército de Saul. Ver a discussão no vs. 3. A expressão “Saul estava apoiado sobre a sua lança” provavelmente significa apenas que Saul, cansado de fugir, tinha-se apoiado em sua lança para descansar. Alguns estudiosos sugerem que esse apoio significava uma tentativa de suicídio, mas I Sam. 31.4 diz-nos que Saul se suicidou com sua espada.
II Sm 1.7 Viu-me e chamou-me. Em sua agonia, Saul viu o amalequita nas proximidades e chamou-o implorando que o matasse. II Samuel nada nos diz sobre a flecha do arqueiro que feriu a Saul, nem sobre a tentativa de suicídio; mas este versículo apresenta indícios que ele havia sido gravemente ferido, embora não corresse perigo de morte iminente (vs. 9). O relato de II Samuel também nada diz sobre o temor de Saul de que os filisteus o encontrassem vivo e o sujeitassem a torturas (ver 31.4), o que representava a exata razão pela qual ele desejava morrer imediatamente.

II Sm 1.8 Saul queria saber quem era aquele homem desconhecido que estava nas proximidades, se era um amigo ou um inimigo. Talvez o amalequita fosse membro do exército de Saul, alguém que poderia dar o golpe de misericórdia. Se fosse um filisteu, Saul não lhe teria feito tal pedido. Se fosse um israelita, sem dúvida poderia tê-lo feito. Ele havia implorado ao escudeiro que poderia ter executado o trabalho, mas este havia recusado (ver I Sam. 31.4). O amalequita era uma espécie de figura neutra, capaz de terminar com a agonia de Saul. Os amalequitas, antigos inimigos de Israel, haviam atacado os israelitas quando estes tinham acabado de deixar o Egito (ver Êxo. 17.8-13), e assim carregavam sobre si a maldição de Yahweh, o que significava que seriam aniquilados de forma absoluta. Ademais, eles abusaram dos filhos de Israel em várias ocasiões. Ver Deu. 25.18; Juí. 3.13; 6.3. Saul havia administrado uma contundente derrota sobre os amalequitas, não fazia muito tempo (ver I Sam. 15.4-9). Essa louca história, que sempre mantivera Israel e os amalequitas em conflito, não importava a Saul naquele momento. Saul queria apenas morrer, e qualquer um serviria como matador, exceto um filisteu.

II Sm 1.9 Os v. 9 e 10 dizem-nos definitivamente que Saul estava ferido, mas não corria o perigo de morrer imediatamente. Mais provavelmente ficaria sangrando até morrer. A história aqui não fala sobre a flecha do arqueiro nem sobre o suicídio de Saul, detalhes que figuram na história de I Sam. 31. Saul estava em angústia, agonizante, mas a história de II Samuel, em seu primeiro capítulo, não nos explica por quê. Talvez o autor espere que nos lembremos da primeira narrativa, pelo que não seria necessário repetir os detalhes. Alguns intérpretes, entretanto, salientam que a palavra “me sinto vencido de cãibra” (ou alguma outra tradução) é uma tentativa de traduzir um termo hebraico desconhecido, o qual implicaria que Saul estava mortalmente ferido. Talvez ele apenas estivesse “estonteado” (conforme certa versão portuguesa diz, “uma vertigem se apoderou de mim”). Mas o vs. 10 é contrário a isso. O amalequita estava certo de que Saul não sobreviveria por muito tempo, e isso só pode ser explicado pela suposição de que ele havia sido ferido de morte.

II Sm 1.10 Com uma espada ou lança, o amalequita atendeu à solicitação de Saul e tirou-lhe a vida. Dessa forma Saul escapou do alcance dos temidos filisteus. Ainda assim mutilaram-lhe o corpo, deceparam-lhe a cabeça e penduraram o seu tronco em uma parede, em Bete-Seã. Ver I Sam. 31.9,10.
“Saul morrera pela mão de um membro da tribo contra quem (no começo de seu reinado) ele falhara em executar o juízo divino (ver I Sam. 15). Ele foi rejeitado por sua desobediência, e por causa disso Davi foi secretamente ungido rei. Agora o julgamento completara o círculo, e um membro do povo de Agague foi o homem que matou a Saul”.

Tomei-lhe a coroa... e o bracelete. Essas eram insígnias da realeza, conforme dito em II Reis 11.12. Isso implica pelo menos três coisas: 1. O amalequita queria prova de que havia matado o rei de Israel; 2. provavelmente ele queria obter o favor de Davi, recebendo uma recompensa por aquele ato, visto que Saul, por tanto tempo, havia perseguido Davi como se este fosse um animal, com intuitos assassinos, e era conhecido como o arquirrival que não lhe dava um momento de sossego; 3. e, finalmente, é possível que ao trazer as insígnias reais ele estava reconhecendo Davi como o novo rei de Israel. Poderíamos esperar que um filho de Saul herdasse o trono, mas Samuel já havia anulado essa possibilidade (ver I Sam. 13.13,14). De fato, Samuel já havia ungido a Davi como rei quando Saul estava no auge do poder (ver I Sam. 16). Talvez todos esses fatos fossem largamente conhecidos.

Tentativas de Reconciliação:

1. Muitos críticos supõem que é impossível e desnecessário reconciliar os dois relatos. Eles acreditam que essas narrativas baseiam-se em fontes informativas diferentes, que eram simplesmente contraditórias. A maioria dos críticos considera a narrativa de I Samuel mais exatamente histórica.

2. Muitos estudiosos conservadores “reconciliam” os dois relatos supondo que a história contada pelo amalequita tenha sido uma fabricação, e não reflita o que realmente aconteceu. O homem teria inventado a história para agradar Davi, que se tornara conhecido inimigo de Saul. A dificuldade dessa “reconciliação” é que o compilador de I e II Samuel não afirma tal coisa. Ele não dá nenhuma indicação de que o amalequita estivesse mentindo, e, por isso mesmo, relatando uma história contraditória.

3. Podemos tentar uma reconciliação entre os dois relatos supondo que eles sejam suplementares, e não contraditórios. Talvez a questão toda tenha acontecido como se segue:

a. Saul foi ferido por uma flecha e, potencialmente, ferido de morte. Ele sangraria até morrer.
b. Temendo a tortura às mãos dos filisteus, caso o encontrassem ferido (embora ainda não morto), Saul pediu que o escudeiro terminasse com sua vida. Mas o escudeiro, temeroso de tratar dessa maneira o ungido de Yahweh, recusou-se a atender ao pedido.
c. Diante disso, Saul tentou suicidar-se, mas realizou um trabalho inepto. Tudo quanto conseguiu foi outro, ferimento horrível, dessa vez por melo de sua própria espada.
d. A essa altura do drama, chegou o amalequita e encontrou Saul agonizante (ver II Sam. 1.9). Saul pediu que o homem pusesse fim à sua vida, ao que o amalequita atendeu, presumivelmente usando sua espada ou lança (ver II Sam. 1.10).

Isso nos fornece alguma reconciliação, mas de nossa própria invenção, e não uma reconciliação provida pelo autor (ou pelos autores) de I e II Samuel. Naturalmente, não há razão alguma para nos preocuparmos em reconciliar os relatos. A fé religiosa não depende desses detalhes, nem de uma harmonia absoluta, que geralmente é obtida através de alguma manipulação desonesta. Somente conservadores fanáticos e os céticos crêem que tal atividade é importante, os primeiros na tentativa de provar que as Escrituras não contêm erro, e os outros para mostrar todos os erros das Escrituras. Ambos acabam recorrendo à categoria das manipulações desonestas.

Uma coisa é certa, Saul terminou sua vida da maneira mais trágica que alguém pode terminar. Afastado de Deus, que leva inevitavelmente a morte, quer seja por assassinato, suicídio ou naturalmente.   

Esperamos poder ter lhe ajudado de alguma maneira.

Reynan Matos
Teólogo

Fonte:

CHAMPLIN, Russell Norman. O Antigo Testamento interpretado: versículo por versículo. São Paulo: Candeia, 2000. v. 2 p. 1237